Líderes organizacionais brancos precisam se conscientizar sobre o racismo

Escrito por Marcos Samaha

As organizações empresariais nascem e se desenvolvem com o objetivo claro e legítimo de gerar o desenvolvimento econômico de seus acionistas. No entanto, por estarem inseridos numa sociedade, esses empreendimentos podem estar engajados em questões que vão além do seu objetivo inicial, com o propósito de impactar positivamente esta sociedade e o meio ambiente, apresentando um comportamento ético e responsável. Esse engajamento dá à empresa um propósito, uma razão de existir, uma dimensão que vai além do retorno financeiro.  A sigla ESG – Environmental, Social and Governance (ou Ambiental, Social e Governança, traduzindo para o português), tem ganhado destaque nos últimos anos, ao sintetizar o esforço de empresas em se engajarem nessas causas. Esse engajamento deveria ganhar ressonância em todas as empresas do Brasil, não apenas nas multinacionais ou ‘supernacionais’, mas, também nas pequenas e médias empresas. Não só como uma forma de dar uma satisfação para o mercado, ou por uma demanda externa, ou para melhorar a reputação das empresas, mas simplesmente porque é a coisa certa a se fazer.

Quando falamos do S da sigla ESG, o Social, estamos falando também sobre diversidade, equidade e inclusão. No Brasil, entre todos os importantes temas de diversidade (como gênero, raça, orientação sexual, pessoas com deficiência e outros), o tema mais grave e urgente é o tema racial. Justifico esse argumento embasado nas estatísticas e na nossa história. 

A escravidão, a maior aberração da história brasileira, que durou 349 anos (mais de dois terços da nossa história desde 1500), sustentou a economia nacional por séculos e deixou uma enorme consequência estrutural que ainda se reflete no grave problema de desigualdade racial do país. As condições sociais e econômicas dos negros no país são as piores em todas as estatísticas sobre educação, saúde, habitação, emprego, renda, violência e mortalidade. Entre 2001 e 2015, a rara presença de executivos negros em 500 empresas analisadas pelo Instituto Ethos variou de 4,8% para 5,8%. A desproporcionalidade entre brancos e negros na liderança organizacional não evolui há décadas. Há uma normalização e uma legitimação de dinâmicas históricas, culturais, institucionais e interpessoais que dão vantagens à população branca, enquanto perpetuam desvantagens para a população negra.

O racismo é uma estrutura de opressão enraizada na formação social do brasileiro, dada a importância econômica da escravidão. Se o impacto do racismo não for confrontado ou combatido de forma eficaz, a baixa presença de negros em posições de liderança não será solucionada. No entanto, existem ainda líderes organizacionais que não entenderam a dimensão do problema e alguns que afirmam que não existe racismo em nosso país, que “isso é coisa do passado”.

Meu primeiro contato com o tema Diversidade e Inclusão foi no Walmart, uma das primeiras empresas a debater o tema por aqui há mais de 20 anos. Posteriormente decidi que minha tese de doutorado seria dedicada especialmente à questão do racismo e da equidade nas empresas, e sobre a conscientização dos líderes brancos nas organizações. Entre os profissionais que entrevistei para a minha tese, verifiquei que a consciência sobre o racismo estrutural se observa em um amplo espectro, que vai do racismo explícito ao negacionismo inconsciente, passando por omissão, ineficácia e gradualismo. Os líderes tomam as decisões e influenciam as decisões de seus liderados. A subjetividade dos processos e práticas de recrutamento e de avaliação profissional afetam as decisões de contratações e promoções. Os projetos de diversidade e inclusão racial são poucos, e os poucos existentes são gradualistas, com expectativas de resultados no longo prazo. Esses fatores impactam negativamente o acesso ao trabalho e à carreira de profissionais negros.

O que podemos fazer

O MOVER, Movimento para a Equidade Racial, criado e desenvolvido nos últimos dois anos, por iniciativa de empresas que se engajaram na causa antirracista,  tem tido um relevante papel para mudar essa situação histórica e estrutural. No entanto, se você analisar a composição das 47 empresas que fazem parte do MOVER, nós estamos falando em muitos casos de multinacionais europeias e norte-americanas. Também temos um grupo de empresas que nasceram no Brasil e têm presença global, e que também investem na pauta ESG. E poucos casos de empresas nacionais de menor porte. Todas essas empresas têm o mérito de estarem se engajando de forma mais ativa na pauta antirracista. Porém, precisamos ressaltar que a economia não gira só em torno das multinacionais e das grandes empresas nacionais. Uma grande parcela da economia gira em torno de empresas médias e pequenas, muitas delas de capital fechado, como é o caso do Tenda Atacado. É óbvio que as grandes empresas acabam pautando a atuação das demais, servindo de exemplo, de modelo. Mas quantos profissionais são funcionários dessas grandes empresas? A grande maioria dos profissionais brasileiros atua em empresas médias e pequenas, logo, conscientizar os líderes dessas empresas é um tema fundamental.

No Tenda Atacado a pauta ESG é colocada em prática por nosso conselho de administração ter essa visão e compreender a necessidade de olhar para todos com um olhar de acolhimento e respeito, uma característica que está nas origens da empresa. Para aprofundarmos ainda mais, contratamos uma consultoria de Diversidade, trouxemos letramento racial para os nossos colaboradores, criamos comitês de diversidade e inclusão que debatem propostas de desenvolvimento, capacitação, criação de políticas, e entre outras várias atividades, nos engajamos no MOVER desde sua fundação, assumindo compromissos públicos de criação de vagas para líderes negros e geração de oportunidades de crescimento e desenvolvimento para profissionais negros.

A luta antirracista vem da necessidade de combatermos uma incongruência civilizatória. Nossa sociedade não vai evoluir enquanto o ser humano não se der conta e confrontar, no espelho, a gravidade das consequências da escravidão e do racismo estrutural no nosso país. O racismo é uma realidade absurda e inaceitável. É uma realidade onde um ser humano se julga superior ao outro por causa da cor da pele ou de outros atributos físicos. Isso remete a teorias falaciosas do racismo científico, dos séculos passados, onde pseudocientistas defenderam a tese de que uma raça é superior a outra. Precisamos lembrar que biologicamente não existe o conceito de raça, não existem diferenças entre um ser humano e outro. Para a Biologia a raça humana é uma só. Diferentes raças humanas só existem enquanto conceitos socialmente construídos. A falta de conscientização sobre a verdade científica de que não existe superioridade racial é um tema ainda a ser confrontado.

Voltando para a história da escravidão, teorias filosóficas diziam que os seres-humanos eram diferentes e que o justo era tratar as pessoas diferentes como “elas merecem ser tratadas”, ou seja, como naquela visão o negro não era civilizado, educado ou desenvolvido, merecia aquele tipo de tratamento. Esse comportamento era corroborado até por retórica de religiosos, que diziam que aqueles africanos precisavam ser catequizados para terem suas almas salvas, e a escravidão era uma forma de salvação. Então, a sociedade tinha argumentos retóricos e religiosos para justificar o injustificável. Infelizmente,versões atualizadas destas retóricas distorcidas ainda persistem nos dias de hoje.

Negacionismo se combate com informação

É preciso ver e ouvir as evidências que as estatísticas gritam: basta olhar para o número de jovens negros assassinados em abordagens violentas; ou observar o nível de renda salarial de negros em comparação aos brancos. Os números oficiais do IBGE evidenciam essas discrepâncias, escancaram o racismo e a desigualdade social embasada em raça. Infelizmente em minha tese eu apresento dados que evidenciam que existem ainda líderes negacionistas, que escolhem não reconhecer as estatísticas nacionais em termos nutricional, hospitalar, habitacional e de empregabilidade, entre outros, que mostram como o racismo afeta grande parte da população. Também não reconhecem que faltam líderes negros, que faltam negros nas gerencias, diretorias e nos conselhos de administração das empresas. Então, quando eu ouço um líder branco afirmar que o racismo não existe, eu devolvo a pergunta: “Como você explica todas essas estatísticas?”. Não temos como dizer que o “racismo é coisa do passado”. Muito pouco mudou nos últimos 130 anos e, se continuarmos a fazer um pouco de cada vez, de forma gradual, ainda vai demorar muito tempo para conseguirmos uma mudança efetiva.

Assim, precisamos confrontar publicamente essa desigualdade, e chamar os líderes brasileiros para a conscientização, precisamos acelerar essa curva de consciência. Precisamos ser mais incisivos na nossa mensagem e termos mais vozes denunciando a mesma coisa. Precisamos assumir, publicamente, compromissos numéricos e de investimentos financeiros para tornar a equidade racial uma realidade. As empresas do MOVER estão assumindo isso. Mas necessitamos que muitas outras empresas, pequenas, médias e grandes, entendam que precisam se engajar de forma concreta.

*Marcos Samaha, CEO da Tenda Atacado e integrante do Movimento pela Equidade Racial (Mover)

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