
No dia 04 de agosto de 2019, a rapper Karol Conká postou em sua conta oficial do Instagram uma foto com o novo companheiro, produtor musical e guitarrista – e branco – Thiago Barromeo. A ‘palmitagem’ – expressão pejorativa para o movimento negro referente as relações inter-raciais – foi logo apontada em críticas ácidas destinadas a cantora. Nos comentários, a percepção de um descompasso entre a mensagem política de suas músicas, focada na valorização da Negritude/Pretitude e de suas conquistas enquanto mulher Preta, e a prática desta valorização. Em uma breve menção a Frantz Fanon e a dois textos ácidos da internet, construo essa reflexão sobre movimentos sociais, discurso e valor mercadológico, punitivismo e as complexidades de se pensar os afetos dos Pretos na atualidade.
Emerson Soares
Este texto nasce a partir de um outro. Na proposta original, eu pensava, por meio da obra de Frantz Fanon, sobre o debate do mais novo relacionamento amoroso-afetivo da rapper Karol Conká. Decidi deixa-lo de lado, para construir este outro, talvez um pouco mais condensado e com as principais ideias que eu gostaria de pontuar.
Aquele texto foi uma produção realizada com muito cuidado. Ao passo em que eu a construía, lia a opinião e a manifestação de outras pessoas Pretas na internet. Duas reflexões me chamaram mais a atenção, pela sua acidez e por seu olhar muito menos descrente na análise do significado deste relacionamento do que o meu próprio. Admiro muitas características em minha escrita, mas a acidez – por vezes, necessária – é uma coisa que me falta.
Decidi construir este terceiro pensamento – porque antes do supostamente oficial, havia um rascunho. Apesar de acreditar que alguns aspectos de vigilância, que não são saudáveis, permeiam a prática militante e política dos movimentos sociais em geral, em alguns casos as pontuações feitas por indivíduos – da sua rede de conexões das mídias sociais digitais, como foi o meu caso – podem aguçar sua percepção em torno de um problema. Então, mesmo com todas as minhas ressalvas quanto ao exercício político vigilante-punitivo, em certos momentos ele pode ser positivo.
Antes que eu pudesse chegar a estas palavras, tentei entender qual o local do movimento negro em problematizar esta relação. Começo a discussão daqui – também muito baseado em um outro texto que vi na Internet.
Em determinados momentos de ‘crise’ ideológica como o que notamos com o novo relacionamento da rapper paranaense, é que percebemos o quanto as nossas prioridades e agendas políticas podem se esvaziar facilmente. O clipe de ‘Tombei’ da artista foi lançado no Canal Kondzilla em 18 de março de 2015. A música e a mensagem visual do videoclipe foram predecessoras para um movimento que se alastraria por um bom tempo, capitaneado pela Geração Tombamento.
O marco que Karol Conká atingia com o single era de grande proficuidade na juventude negra e nas gerações mais novas que se empoderaram ao som dele. Tombei, o single, e o Tombamento, desta geração, abriram um terreno para discutirmos as estéticas Pretas. Como estamos, como nos posicionamos visualmente. Quando, onde e como são os nossos cabelos. A mensagem era de que poderíamos ser potentes por meio do corpo, e visualizar uma artista negra convicta no posicionamento de autoaceitação era combustível para os consumidores de sua imagem.
O mais primordial entrave, dentre alguns, que enxergo nisto tudo, é justamente a lógica mercadológica perversa que engendra as nossas maneiras de consumir o pensamento político. De Tombei para cá, sabemos a visibilidade de mercado que a população Preta ganhou enquanto consumidores. E isto não é negativo, mas percebo que talvez tenhamos estancado nesta pauta – até o momento atual, e por tempo demais.
A cultura é meio essencial para gerarmos transformações, mas quando encontramos todo uma indústria por detrás capaz de nutrir os discursos, eles tendem a se esvaziar. Penso que a estética, tal como foi pautada no movimento negro e ainda o é, de forma extremamente criativa e corajosa, deve ser uma porta de entrada para a compreensão de nossa Pretitude/Negritude como um todo, e não o ponto final.
O aspecto de ‘consumo do discurso’ nos fere bastante, também, porque estamos falando de figuras públicas e de pessoas Pretas. Na tentativa de construir a nossa própria realidade e nossas próprias cadeias de pensamento, nos encontramos nas entrelinhas dos resquícios do passado e das mobilizações do presente. E neste sentido, depois de ler o pensamento de outros Pretos, percebo de onde vem esta indignação.
Nessa carga histórica e simbólica que as relações inter-raciais carregam, será que conseguiremos caminhar para um estado de sociedade no qual enxergamos estas relações como não tão problemáticas? No caso de Karol Conká, nos vem a sensação de um ciclo sem fim. Alguns poucos de nós se apoderam, ganham visibilidade midiática, se tornam referências para o movimento, e a ‘palmitagem’ é carta certeira para estragar tudo e para manchar a imagem.
Parece que estamos em um ciclo de reprodução da mensagem de que Pretos só são bons na ‘lacração’ (não vou aprofundar também este termo, porque já foi bastante estigmatizado e esvaziado) e, na vida comum dos afetos, quem desejamos é o branco.
Dentre as coisas que Frantz Fanon fala em seu texto que trouxe para dentro da outra reflexão, é sobre o sentimento de Outro que um personagem literário – Preto e imigrante, em terras europeias –, por ele analisado, sentia em relação a sua amada branca. Novamente, parece que repetimos ciclos e a mensagem que estamos circulando entre nós mesmos é de que somos os Outros uns dos outros.
O conceito de Outro é um conceito muito explorado acadêmica e intelectualmente nas nossas disputas epistemológicas dentro do campo dos conhecimentos universitários, pedagógicos e educacionais. Tem a ver também com Lugar de Fala, mas este disseco melhor em um outro momento. Os Outros são todos aqueles que não são o sujeito dito ‘universal’ – para fins de síntese, vou me reter a figura do homem e branco.
Os abandonos e solidões afetivas são situações comuns nas vidas afetivas de homens Pretos e mulheres Pretas de forma geral. E estamos lutando para que estes afetos sejam semeados e circulados entre nós, o que é muito positivo. Como disse anteriormente no texto, consumir discursos de forma massificada tal qual estamos fazendo deve ser uma semente para a nossa construção crítica, e não nossa âncora.
E parte desta criticidade exige que nós tentemos construir a mudança nas nossas próprias realidades, sem o punitivismo para com o comportamento do outro – e este pensamento deve ser aprofundado principalmente quando se trata de figuras públicas. Este debate não se encerra com o meu texto, e tampouco tem respostas enclausuradas e perfeitamente moldadas.
Mas, definitivamente, precisamos pensar a relação entre povo Preto e os espaços midiáticos, sobre culpabilização como antagônico do discurso político, e sobre o que queremos realmente para nós – olhares atentos, cuidadosos e lúcidos para como construímos nossos afetos, ou obrigatoriedades para assinalarmos uma lista de obrigações para com nossas militâncias.